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Em entrevista a BBC News Brasil, cineasta afirma que filme, que atingiu 5 milhões de espectadores no país, foi feito para oferecer ‘reflexo do Brasil em um momento complexo de sua história’. Filme do cineasta brasileiro superou R$ 140 milhões em bilheteria global
Getty Images via BBC
Indicado a três Oscars, “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, superou a marca de R$ 140 milhões em bilheteria global.
O filme já movimentou US$ 25,4 milhões (cerca de R$ 144,4 milhões), segundo o site especializado Box Office Mojo.
Nos Estados Unidos, o filme já alcançou US$ 3,5 milhões. Na Europa, as maiores bilheterias foram na França (US$ 1,9 milhão), Portugal (US$ 1,4 milhão) e Itália (US$ 692,5 mil).
No país, o filme continua aumentando seu público, mesmo após três meses de sua estreia, em novembro passado, e bateu US$ 17,5 milhões em bilheteria e a marca de 5 milhões de espectadores.
Para o diretor Walter Salles, “Ainda estou aqui” tem mobilizado tanta gente por ser uma história sobre resistência — em um contexto de fragilidade da democracia em todo o mundo.
“Eunice Paiva não se deixou vitimizar, enfrentou um regime autoritário acreditando nas instituições, arquitetou formas de resistência únicas. Sorriu quando lhe pediram para chorar. Escolheu a vida”, diz o diretor em entrevista à BBC News Brasil.
O filme também tem recebido uma série de prêmios: Globo de Ouro, Goya, Festival de Veneza, Festival Internacional de Roterdã…
No domingo passado (16), foi superado no Bafta, o “Oscar britânico”, pelo filme francês “Emilia Pérez” na categoria de Melhor Filme em Língua Não Inglesa.
O revés foi um golpe na expectativa de que o filme ganhe o primeiro Oscar para o Brasil.
Salles diz, no entanto, que o reencontro do público brasileiro com a sua própria história nos cinemas é “o maior prêmio” com que poderia sonhar.
“Esse filme, mais do que qualquer outro que dirigi, foi feito para oferecer um reflexo do Brasil em um momento complexo de sua história, para o público brasileiro. Esse é o propósito do filme. Depois vêm os prêmios que o filme pode vir a receber, ou não”, diz o cineasta.
“Não é um filme que está sendo reconhecido, e sim toda a cinematografia brasileira.”
Mas o diretor confessa que só acompanha a enxurrada de memes com o filme e Fernanda Torres por meio dos filhos, porque é “analógico” e não tem redes sociais.
Em 2 de março, terminará a longa campanha da temporada de premiações com o evento mais esperado de todas, o Oscar.
“Ainda estou aqui” fez história ao ser indicado como Melhor Filme, além de Melhor Filme Internacional e de Fernanda Torres como Melhor Atriz.
Mas Walter Salles afirma que não nutre grandes expectativas.
“Sendo botafoguense, parto do pressuposto de que uma pessoa otimista tem boas chances de estar mal informada”, brinca Salles.
“Não tenho ideia do que poderá acontecer no Oscar, mas sei que o cinema brasileiro depende sobretudo de continuidade”, diz o diretor.
E essa continuidade, diz o diretor, depende da regulamentação do streaming, para criar regras claras para as plataformas no país e gerar oportunidades de financiamento para a produção nacional: “É uma terra de ninguém.”
Leia a seguir os principais trechos entrevista.
‘Ainda estou aqui’ realizou um feito histórico para Brasil ao ser indicado na categoria de Melhor Filme
Getty Images via BBC
BBC News Brasil – “Ainda estou aqui” realizou um feito histórico ao ser indicado na categoria de Melhor Filme. Na sua visão, qual seria o impacto dessa conquista para a indústria cinematográfica nacional?
Walter Salles – O querido mestre Carlos Diegues dizia que o Brasil tem uma rara intuição para o cinema. Concordo com essa percepção. Se pensarmos nas muitas vezes em que a produção de cinema foi interrompida por regimes autoritários ou crises econômicas, é um milagre que a cinematografia brasileira não só reaja, mas seja celebrada, como aconteceu no ano passado.
Em 2024, filmes brasileiros estavam presentes em todos os grandes festivais internacionais, como os de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, e diversos primeiros filmes foram premiados — como foi o caso de “Baby”, de Marcelo Caetano, e “Manas”, de Marianna Brennand.
Não tenho ideia do que poderá acontecer no Oscar, mas sei que o cinema brasileiro depende sobretudo de continuidade. E essa continuidade, por sua vez, depende da regulamentação do streaming, que é uma terra de ninguém por aqui, e de leis similares às que existem na França e na maioria dos países europeus para o audiovisual.
O Centro Nacional de Cinematografia francês estipulou regras claras, que protegem a propriedade intelectual das obras audiovisuais realizadas no país e abrem oportunidades não só de financiamento para a produção independente de filmes e séries, mas também cria mecanismos para a defesa da memória audiovisual. A Cinemateca Brasileira, por exemplo, poderia e deveria ser uma das beneficiadas dessa regulamentação.
Filme com Selton Mello e Fernanda Torres atraiu 5 milhões de espectadores aos cinemas no Brasil
Divulgação
BBC News Brasil – Esta é a primeira vez que você concorre na categoria de Melhor Filme, que carrega um peso simbólico enorme. O que isso significa para você, tanto pessoalmente quanto profissionalmente?
Salles – Entendo que não é um filme que está sendo reconhecido, e sim uma cinematografia. É a prova de que a Academia está mais aberta ao cinema independente feito fora do eixo de produção mais tradicional. Bong Joon-Ho e Alfonso Cuarón abriram esse caminho com “Parasita” e “Roma”, dois grandes filmes. Que muitos outros venham.
Isso dito, esse filme, mais do que qualquer outro que eu dirigi, foi feito para oferecer um reflexo do Brasil em um momento complexo de sua história, para o público brasileiro. Esse é o propósito do filme.
Depois vêm os prêmios que o filme pode vir a receber, ou não. Esse reencontro do público com a sua própria história nas salas de cinema foi o maior prêmio com que poderíamos sonhar.
BBC News Brasil – Como cineasta, como você mudou entre “Central do Brasil” e “Ainda Estou Aqui”? Em que aspectos essa transformação é mais evidente?
Salles – Passaram-se 26 anos, mas o desejo de narrar uma história em que a trajetória dos personagens se confunde com algo mais amplo, a trajetória coletiva do país, permanece.
O que muda com a maturidade é uma certa percepção de que é possível dizer mais com menos. Com atuações mais contidas, com uma direção que não deseja ser percebida. De alguma forma, isso talvez permita que a distância entre o espectador e os personagens diminua.
BBC News Brasil – “Terra Estrangeira”, “Central do Brasil” e agora “Ainda estou aqui” tocam em um nervo social e trazem mensagens sobre o Brasil. Sua visão sobre o país mudou ao longo desses filmes? Hoje você está mais otimista?
Salles – Voltamos a viver sem os sobressaltos cotidianos e os horrores do governo de extrema-direita que assolaram o país. Esse é o copo meio-cheio.
Mas sabemos da fragilidade da democracia mundo afora, e muito disso vem da incapacidade de resolver problemas estruturais na maioria dos países. No Brasil, eles estão à flor da pele. A sobrevivência da nossa democracia dependerá mais do que nunca do enfrentamento dessas questões.
BBC News Brasil – Você mencionou em entrevistas que a campanha de “Ainda estou aqui” é muito orgânica. Por que acredita que o filme tem mobilizado tantas pessoas, no Brasil e no exterior, especialmente neste momento político?
Salles – Talvez pela forma como Eunice Paiva, brilhantemente interpretada por Fernanda Torres, nos ensina a sobreviver a uma perda trágica como a que a sua família sofreu.
Eunice Paiva não se deixou vitimizar, enfrentou um regime autoritário acreditando nas instituições, arquitetou formas de resistência únicas. Sorriu quando lhe pediram para chorar. Escolheu a vida. O livro de Marcelo e o filme são ambos sobre a importância da resistência — e a vida.
BBC News Brasil – Mesmo que orgânica, também houve uma campanha organizada em torno do filme, especialmente fora do Brasil. A Sony investiu no filme, e figuras como Alfonso Cuarón e Sean Penn se engajaram. Qual é a importância desse apoio internacional? Você percebe uma “Hollywood alternativa” abraçando o filme?
Salles – A Sony Classics, como nós, entendeu que o filme deveria falar por si. Organizou dezenas de sessões e debates nos Estados Unidos, em salas de cinema. Esse boca a boca foi dando uma força crescente ao filme.
A Sony Classics não colocou posters gigantescos nas cidades norte-americanas ou anúncios na TV, e fez bem. Já os festivais de cinema foram os nossos maiores aliados nessa caminhada, na medida em que votantes frequentam esses festivais.
E foi muito importante ter o apoio de cineastas e atores que eu admiro como Alfonso Cuarón. Alejandro Iñarritu, Guillermo del Toro, Wim Wenders, Sean Penn, Valeria Golino, Olivier Assayas, Harvey Keitel. Todos foram muito generosos conosco. Novamente, são apoios que nascem da experiência de ver o filme.
BBC News Brasil – Em uma conversa recente, Vinícius de Oliveira comentou que, em 1999, durante a campanha de Central do Brasil, ninguém do elenco ou produção acreditava realmente na vitória como Melhor Filme Estrangeiro — a expectativa estava no prêmio para Fernanda Montenegro. Você sente que, desta vez, está mais confiante na possibilidade de vitória de “Ainda estou aqui”? Por quê?
Salles – Não nutro expectativas, pelo contrário. Sendo botafoguense, parto do pressuposto de que uma pessoa otimista tem boas chances de estar mal informada (risos).
Concorrer ao Oscar é como entrar no mar. Nunca se sabe ao certo para onde a corrente vai te levar. O que se pode fazer é participar com a mesma honestidade com que o filme foi feito.
Acho que esse é um ano atípico, em que tudo pode acontecer. Espero que o filme seja visto pelos votantes, é o máximo que podemos esperar. A Sony Classics lançou o filme nos Estados Unidos em boa hora, dando tempo para que ele pudesse ser apreciado coletivamente nas salas de cinema antes da votação.
Para nosso filme, a experiência da tela grande e da fruição coletiva é vital. Os prêmios de público e da crítica também foram fundamentais.
Pena que o filme não tenha podido estrear na Inglaterra antes do Bafta, por exemplo. As sete indicações que o filme Diários de Motocicleta recebeu no Bafta têm muito a ver com o fato do filme ter sido um sucesso nos cinemas antes da votação. Muitos votantes do Bafta também são votantes da Academia norte-americana, e esses detalhes contam.
BBC News Brasil – Muitos brasileiros têm abraçado o filme e se engajado na campanha, alguns inclusive com um sentimento de revanche por “Central do Brasil” não ter vencido em 1999. Caso o filme vença este ano, você acha que haverá um senso de justiça histórica? E se mais uma vez ficar sem o prêmio, o que ficará disso?
Salles – Antes de mais nada, acho que devemos celebrar o fato de duas atrizes extraordinárias como Fernanda Montenegro e Fernanda Torres serem indicadas ao Oscar, um prêmio que só foi dado duas vezes para atrizes atuando em língua não-inglesa.
São indicações que falam sobre a excelência de nossas atrizes, assim como falam de uma sensibilidade essencialmente brasileira.
A torcida é algo que sentimos em cada exibição ao redor do mundo, e esse carinho tem nos ajudado nessa longa maratona. Espero que esse desejo se cumpra, mas não há nenhuma garantia nessa direção.
BBC News Brasil – Você tem acompanhado os memes e toda a movimentação online, a “tropa” que está defendendo o filme nas redes sociais? O que acha que gerou tanto engajamento entre os brasileiros e até fora do país?
Salles – Talvez seja o reencontro de muitos brasileiros com uma história do Brasil que havia permanecido submersa por muito tempo — e com a possibilidade de se verem retratados na tela do cinema.
Em relação aos memes, não tenho mídia social, sou essencialmente analógico. Mas acompanho os memes mais criativos graças aos meus filhos adolescentes (risos).
BBC News Brasil – Por fim, você já teve a oportunidade de assistir aos outros indicados a Melhor Filme ou aos concorrentes na categoria de Filme Internacional? Algum deles se destacou como seu favorito?
Salles – Sim, tento sempre ver os filmes indicados — e os outros também. Esse é um ano especialmente forte para o cinema independente — tanto aquele feito nos Estados Unidos, como “Anora”, de Sean Baker, quanto em outros países.
Adorei o primeiro longa de ficção de uma diretora indiana, Payal Kapadia, “Tudo o que imaginamos como luz”, que estava também indicado ao Bafta e ao London Film Critics, como AEA. Escrevi inclusive sobre o filme para um site de cinema, Indiewire.