
A iniciativa “Nordeste Já” trouxe duas canções unindo diversos artistas em prol das vítimas de enchentes que atingiram a região em 1985, após cinco anos de forte seca. O g1 conversou com Fagner, Fausto Nilo e outros músicos envolvidos no projeto e revela bastidores da gravação. Há 40 anos, artistas brasileiros lançavam a música ‘Chega de Mágoa’ para ajudar o Nordeste
Há 40 anos, um time com 155 estrelas da música popular brasileira se reuniu para gravar duas canções em um compacto especial em vinil. O ano era 1985, e o Nordeste vivenciava enchentes depois de cinco anos seguidos de seca. Grandes nomes se mobilizaram para a iniciativa Nordeste Já, dois meses após o lançamento de “We are the world”, hit norte-americano concebido para ajudar a população pobre africana.
✅ Clique e siga o canal do g1 Ceará no WhatsApp
Artistas nordestinos participaram ativamente da organização do projeto, como Fagner, Gilberto Gil e Caetano Veloso. A iniciativa foi coordenada e realizada pelo Sindicato dos Músicos do Rio de Janeiro (SindMusi).
Em um tempo em que a comunicação dependia dos telefones fixos e dos orelhões, a ideia conseguiu juntar os artistas brasileiros em poucos dias. Em maio de 1985, as duas canções também foram registradas em clipes com exibição no Fantástico (assista no vídeo acima).
O resultado foi um disco compacto distribuído pela Caixa Econômica Federal, com tiragem inicial de 500 mil exemplares. Os valores arrecadados foram destinados à construção de centros comunitários no Rio Grande do Norte, em Pernambuco e no Piauí, segundo informações do SindMusi. A reportagem procurou a Caixa, mas o banco não divulgou o valor arrecadado nem as cidades beneficiadas.
LEIA TAMBÉM:
‘Dia Brasil’ no Rock in Rio: artistas se encontram para gravação de clipe especial; assista
Ministério da Cultura publica nota de repúdio ao tratamento dado a Milton Nascimento no Grammy
‘Eu fui dar, mamãe’: A banda que usou refrão ‘gaiato’ para zoar gravadora e virou hit nos anos 80
“Chega de mágoa” e “Seca d’água” foram músicas compostas em esforços coletivos. Para o disco, os artistas trabalharam de forma voluntária e cederam os direitos autorais. Foram três sessões de gravações entre os dias 8 e 16 de maio no Multistudio, no Rio de Janeiro, formando um encontro histórico das grandes lendas da música brasileira.
Influência estrangeira e retrato da seca
Artistas reunidos no estúdio para as gravações do Nordeste Já, em 1985
Carlos Horcades/Divulgação
Em março de 1985, a música “We are the world” era lançada. Escrita por Michael Jackson e Lionel Richie, a canção foi gravada por 45 cantores norte-americanos, como parte do projeto USA for Africa. O objetivo era arrecadar fundos para o combate à fome e às doenças no continente africano.
A faixa foi um sucesso internacional e inspirou o Nordeste Já no Brasil. Com o objetivo de angariar fundos para vítimas das enchentes de 1985, anos após uma das piores secas do século XX (de 1978 a 1983), o projeto mobilizou um grande time de artistas para arrecadar doações.
O professor do departamento de história da Universidade Federal do Ceará (UFC), Frederico de Castro Neves, explica que a seca do período destruiu a produção agrícola e devastou a população nordestina com mortes e doenças.
Em 1985, artistas se reuniram para gravar disco e ajudar pessoas do Nordeste que sofriam com forte enchente
Vantoen Pereira Jr./Divulgação
“Segundo a CNBB, foram centenas de milhares de mortos pela fome. Os índices de miséria, mortalidade infantil, mendicância e migração foram muito aumentados”, declara.
O livro “Genocídio do Nordeste”, publicado pelo IBASE, com apoio da CNBB mostra que:
Os gastos com programa de emergência na seca de 1979-1983 totalizaram cerca de 780,5 bilhões de cruzeiros;
700 mil pessoas morreram na região em decorrência da fome e fraqueza somente em 1983;
94,6% da causa das mortes de crianças menores de dois anos em 1983 se deu devido à fome e às doenças infecciosas.
Além da seca, o Nordeste também foi atingido por fortes enchentes. “Em 1985, uma quadra chuvosa particularmente forte provocou enchentes em vários municípios ao longo, principalmente, do rio Jaguaribe”, comenta Frederico. Segundo o professor, parte da população perdeu bens, casas e trabalho por conta do desastre.
O contraste climático foi abordado na faixa “Seca d’Água”, criada a partir de um poema do cearense Patativa do Assaré:
“É triste para o Nordeste o que a natureza fez
Mandou cinco anos de seca e uma chuva em cada mês
E agora em 85, mandou tudo de uma vez
A sorte do nordestino é mesmo de fazer dó
Seca sem chuva é ruim
Mas seca d’água é pior”
Quando o compacto foi lançado, ele foi dado como brinde para quem depositasse 10 mil cruzeiros em qualquer agência da Caixa Econômica Federal.
O compacto Nordeste Já, lançado em 1985, reuniu um time de estrelas da música brasileira
Reprodução
Segundo informações divulgadas pelo SindMusi em 2015, os valores arrecadados foram destinados ao Projeto Verde Teto, servindo para a construção de centros comunitários em áreas doadas pelas prefeituras nas cidades de Janduís (Rio Grande do Norte), Oeiras (Piauí), Igarassu e Catende (Pernambuco).
Por trás das letras e das notas
Chico Buarque, Gilberto Gil e Caetano Veloso estão entre os compositores de ‘Chega de Mágoa’
Vantoen Pereira Jr./Divulgação
Foi num apartamento no Leblon, no Rio de Janeiro, que o projeto começou a ser escrito. O cantor cearense Fagner recebeu em sua casa os mais renomados nomes da MPB: Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Djavan, Roberto Carlos, entre outros.
Alguns sentados em cadeiras, outros pelo chão, enquanto Gilberto Gil tocava o violão, instigando o grupo. Juntos, eles deram início aos versos da canção “Chega de Mágoa”. O processo criativo se estendeu por mais um dia. Dessa vez, o encontro foi na casa de Chico Buarque. Foi lá que a canção foi finalizada.
Em conversa com o g1, o cantor Fagner relembra que a moradia dele no Leblon era um ponto de encontro de artistas para diversas causas. Para as ideias do Nordeste Já, ele chegou a ser anfitrião de duas ou três reuniões.
O cantor Erasmo Carlos também estava entre os compositores da letra de “Chega de Mágoa”, em uma criação coletiva que também contou com Milton Nascimento e Fernando Brandt. Das curiosidades na memória de Fagner, está o dia em que Erasmo não foi autorizado por ele a entrar no apartamento com uma caixa de uísque.
Canção ‘Seca d’água’ teve versos de Patativa do Assaré e melodia de Raimundo Fagner
Ficou também com Fagner a tarefa de fazer uma melodia da segunda música gravada no compacto, “Seca d’Água”. A letra era um poema do cearense Patativa do Assaré. Segundo o cantor, Fausto Nilo e Chico Buarque também trouxeram ideias para essa faixa do “lado B”.
“Patativa apareceu quando só viemos notar que teríamos que fazer outra música pro compacto da Caixa, que abraçara o projeto. Foi quando liguei pra ele pra que escrevesse alguma coisa pra gente musicar, pois ele não podia ficar de fora. E ele foi cirúrgico. (…) Patativa me liga no outro dia com a letra pronta. O papo foi divertido e sábio como sempre”, relatou Fagner.
Enquanto a primeira faixa do disco tinha o reggae característico das canções de Gilberto Gil, os versos de Patativa vinham em ritmo de forró . Na letra, o poeta alertou sobre o sofrimento das vítimas das enchentes nos estados do Maranhão, Piauí, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará.
Trecho do poema de Patativa do Assaré em Seca d’Água:
“O Jaguaribe inundou a cidade de Iguatu
E Sobral foi alagada pelo Rio Acaraú
O mesmo estrago fizeram Salgado e Banabuiú
Ceará martirizado, eu tenho pena de ti
Limoeiro, Itaiçaba, Quixeré e Aracati”
Ainda de acordo com Fagner, a música permitiu uma chance de participação para mais artistas, pois “Chega de Mágoa” já tinha uma seleção de quem cantaria cada estrofe.
Mobilização para um canto de liberdade
O compositor cearense Fausto Nilo também participou da criação coletiva para o Nordeste Já
Reprodução
O compositor cearense Fausto Nilo e o cantor Raimundo Fagner estiveram em evento de divulgação do disco em Fortaleza, em julho de 1985, ao lado do então governador Gonzaga Mota. Reportagens da época do jornal do Diário do Nordeste mostram que, ainda em junho, era grande a procura pelo disco nas agências da Caixa.
Aos 80 anos, Fausto Nilo, que participou do projeto, comenta alguns dos momentos vividos nesses dois dias de criação, mas confessa que a idade avançada limita a memória.
“Eu queria me lembrar. Um dia eu tentei fazer esse exercício para lembrar onde foi que eu contribuí, mas juro que eu não me recordo. Mas foi um trabalho muito equilibrado, cada pessoa contribuiu um pouco”, destaca.
Ele ressalta que, por mais que grandes nomes estivessem reunidos ali, é difícil produzir em grupo. O compositor é até exigente com o resultado obtido. “Não é fácil com muita gente, acho até mais complicado, porque fragmenta o processo. Uma pessoa tem uma ideia, a outra colabora com outra, às vezes leva um tempo, você vai ficando um pouco inibido com os colegas. Levou um tempo para dinamizar a participação”, afirma.
“Às vezes eu acho que, embora tivesse vários mestres da canção, não sei se o resultado corresponde à potência dessa junção de pessoas, entendeu? Às vezes, com muita gente, fica mais difícil de controlar e montar…, mas terminou dando certo”, acrescenta.
Téo Lima, atual presidente do Sindicato dos Músicos do Rio de Janeiro, atuou diretamente no projeto e destaca a importância que a associação teve ao reunir os músicos. Segundo ele, artistas do Brasil inteiro tiveram interesse em participar, mas ressalta que agrupar tantos artistas de diferentes regiões foi um desafio.
“O projeto de elaboração teve uma dificuldade justamente porque todo mundo queria participar e uma grande parcela dos artistas morava em São Paulo. Na época, quem morava em São Paulo tinha que se locomover para cá [Rio de Janeiro] e a gente vinha nos cuidar disso através de um apoio dos próprios artistas, e alguns tiraram dinheiro do próprio bolso e pagaram as passagens deles mesmo”, comenta.
O cearense Ednardo ao lado de Zé Ramalho, Tim Maia e Geraldo Azevedo nas gravações do Nordeste Já
Vantoen Pereira Jr./Divulgação
Ninguém ganhou dinheiro, nenhum artista foi remunerado para fazer esse trabalho. Foi tudo pela boa vontade, pelo interesse de ajudar o país
Para o cantor cearense Ednardo, o projeto também marca um momento político de transformações. Em 1984, o movimento Diretas Já foi a maior manifestação popular e pedia as eleições presidenciais diretas após 20 anos de ditadura militar. No ano do Nordeste Já, o país caminhava para a redemocratização.
“O Brasil estava voltando. Isso aí foi tão importante. Voltando de uma época terrível, de uma ditadura civil-militar, para um período, vamos dizer, melhor de se viver. Foi um momento político também de transformações, onde começamos a reviver”, declara Ednardo ao g1.
O cearense acredita que o contexto não apenas climático, mas também político, colocou o “Nordeste Já” em destaque internacional.
“A alegria estava estampada no rosto de todos os artistas, que por natureza, são solidários à liberdade, solidários à democracia e à liberdade. Isso daí é o que fez da gente e do nosso país, naquele momento, aquela ação ser mais importante, em termos, eu diria, mundial, do que a [música] ‘We Are the World’. Tão importante quanto para os nossos irmãos africanos, mas aqui também, na América do Sul, no Brasil, estávamos com esse conversamento tão maravilhoso quanto”, destaca.
Encontros de lendas da música
Gal Costa, Caetano Veloso e Roberto Carlos nos bastidores das gravações do Nordeste Já, em 1985
Vantoen Pereira Jr./Divulgação
Os arquivos pessoais de dois fotógrafos guardam detalhes e imagens exclusivas dos três dias de gravação na Barra da Tijuca, algumas delas ilustram esta reportagem do g1. Em 2019, o fotógrafo e professor de design Carlos Horcades e o fotógrafo Vantoen Pereira Jr. se uniram para montar uma exposição sobre o Nordeste Já.
A mostra com mais de 100 fotografias ficou em cartaz por cerca de um mês na Casa de Cultura Laura Alvim, no Rio de Janeiro, resgatando imagens que eternizam o encontro de lendas da música brasileira. Juntos, estavam nomes da velha guarda, como Emilinha Borba e Elizeth Cardoso, e da nova geração, como Paula Toller e Roger, do Ultraje a Rigor.
Atualmente, existe um supermercado no lugar do estúdio onde tudo aconteceu, comenta o fotógrafo Vantoen Pereira Jr. No ano da gravação, ele era fotojornalista na extinta revista Manchete e também trabalhava para um jornal do Sindicato dos Músicos.
Como contextualiza Vantoen, a efervescência da música brasileira em 1985 tinha começado com a primeira edição do Rock in Rio, realizada no mês de janeiro. O lançamento de “We Are The World” também mostrava o impacto da classe artística unida por uma causa. Naqueles dias do Nordeste Já, ele considera que vivenciou um momento único.
“Eu fico até meio emocionado, porque eram músicos que eu era criança e ouvia falar deles. A minha avó falava da Elizeth Cardoso, que foi freguesa dela como cabeleireira. Então, de repente, eu tava de frente com a Elizeth… Isso foi genial, eu me sinto eleito porque estava ali naquele momento”, comenta.
Para ele, o retrato é também de uma época. Como recorda Vantoen, o registro passava pelo processo da fotografia analógica: filmes coloridos, filmes em preto e branco, o envio dos materiais para o laboratório e os resultados conferidos somente depois da revelação.
Segundo o fotógrafo Carlos Horcades, Rita Lee despertou fascínio em outros artistas durante as gravações
Carlos Horcades/Divulgação
Em 1985, Carlos Horcades já tinha produzido três capas de discos de Alceu Valença. Foi o cantor pernambucano quem fez o convite para as sessões do Nordeste Já.
“O Alceu me ligou e me disse: ‘olha, tá rolando uma gravação importantíssima aqui, você não quer vir ver?”. Aí eu fui correndo lá. Quando eu cheguei lá, o Vantoen também estava. Foi quando eu conheci o Vantoen. Aí dissemos: ‘Vamos fotografar, vamos mandar ver’. Aí fotografamos tudo”, contou Carlos.
O estúdio era grande e acomodava muitas pessoas ao mesmo tempo. Para ele, as imagens captaram encontros que até então pareciam improváveis, com artistas de estilos, origens e gravadoras diferentes.
“Era uma harmonia fantástica. Rita Lee, Elba Ramalho, Gonzagão… Todo mundo da classe artística. Foi um orgasmo fotografar, foram três dias de prazer. De noite, eles ficavam mixando. Aí é que ficavam mais o Chico, Caetano, Erasmo e Roberto, pois esses eram mais preocupados com a produção toda. Então de noite, eles ficavam mixando e preparando o dia seguinte”, relembra Carlos.
O cantor Tim Maia protagonizou um dos episódios lembrados por ele. O músico e arranjador Dori Caymmi assumia a posição de regente do coro nos trechos em que todos os artistas cantavam juntos em “Chega de Mágoa”. Eram momentos em que os cantores ficavam sentados no chão do estúdio.
De improviso, o cantor Tim Maia assumiu a condução do coro incluído na música ‘Chega de Mágoa’
Carlos Horcades/Divulgação
“Teve uma hora que o Tim Maia fazia uma cara de ‘não tô gostando’. Aí daqui a pouco, ele diz: ‘Para! Para todo mundo! Não é assim. É assim’… E aí começou a cantar e dar um swing diferente na música. E aí ele começou a reger o coro, todo mundo sentadinho no chão. Tem uma foto do Tim fazendo cara de vitória, como quem diz ‘tá vendo? eu sou o fodão, eu comandei essa turma aí toda’… E aí todo mundo riu e aplaudiu. Além do ouvido dele de descobrir o que estava errado, teve o poder dele de reger tantas pessoas importantes”, afirmou o fotógrafo.
Outro momento captado nos inúmeros filmes da câmera de Carlos foi Elba Ramalho testando poses de relaxamento na parede do estúdio. O fotógrafo lembra que o clique foi registrado enquanto a cantora paraibana tentava se mexer e relaxar nos intervalos das gravações.
As memórias de Carlos Horcades também recuperam o fascínio causado por Rita Lee nos artistas naqueles dias de gravação. “Na hora que ela começou a cantar, parou tudo. O estúdio ficava cheio de gente, né? Parou tudo”, recorda.
Nos intervalos das gravações, a cantora Elba Ramalho tentou poses de relaxamento no estúdio
Carlos Horcades/Divulgação
Com depoimentos de pessoas envolvidas nas gravações, como empresário, produtor musical e técnico de som, a curadoria de Carlos e Vantoen trouxe outras curiosidades sobre o episódio.
Uma delas foi a participação de Tom Jobim e Milton Nascimento, que não puderam estar presentes nas sessões conjuntas. O piano de Tom Jobim e a voz de Milton foram adicionados em momentos posteriores, na edição das músicas.
Para Vantoen, a ideia é recuperar estas informações em um livro ou em outras mostras que celebrem os 40 anos do projeto Nordeste Já.
Assista aos vídeos mais vistos do Ceará: