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Essas são as primeiras vistorias em cemitérios após a retomada dos trabalhos da comissão. Vera Paiva e a deputada federal Natália Bonavides durante audiência pública com a Comissão de Mortos e Desaparecidos
Bruno Campos/TV Globo
A professora Vera Paiva, filha do ex-deputado federal Rubens Paiva e da advogada Eunice Paiva, cuja vida foi retratada no filme “Ainda Estou Aqui”, esteve no Recife nesta quinta-feira (13) para participar de audiência pública da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos durante a ditatura militar no Brasil (veja vídeo acima).
A comissão está realizando as primeiras diligências em cemitérios para buscar e identificar restos mortais de vítimas do período de repressão. Os trabalhos do grupo foram retomados em agosto de 2024 e as primeiras vistorias começaram pelo Recife, na terça (11), nos cemitérios da Várzea, na Zona Oeste, e de Santo Amaro, no Centro da capital pernambucana.
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Vera Paiva relembrou o depoimento do coronel Paulo Malhães à Comissão da Verdade, em 2014, ocasião na o militar confessou a participação em torturas e execuções durante a ditadura.
“O coronel Malhães, quando começou a dar depoimento, falou exatamente isso: a função da tortura e, em particular, a do desaparecimento, que é um dos nossos temas centrais aqui, é apavorar, assustar definitivamente amigos, familiares e quem está em volta”, disse Vera Paiva.
A busca pelos restos mortais está sendo feita pela equipe de identificação de mortos e desaparecidos políticos, seguindo um roteiro para identificar possíveis locais onde os corpos de perseguidos políticos podem ter sido sepultados, ocultados ou destruídos. A ação é realizada com o apoio do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.
Eunice Paiva participou da primeira comissão
A primeira composição da comissão foi montada em 1995, com a participação da advogada Eunice Paiva – viúva do ex-deputado Rubens Paiva, torturado e assassinado em 1971, após ter sido levado para interrogatório por agentes da ditadura no Rio de Janeiro.
Eunice recebeu o atestado de óbito do marido 25 anos depois, em 1996. Até então, Rubens Paiva era dado como desaparecido.
No filme “Ainda Estou Aqui”, indicado ao Oscar em três categorias (Melhor Filme, Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Atriz, para Fernanda Torres), uma das cenas mostra Eunice Paiva recebendo o documento.
Uma dos cinco filhos do casal, Vera Paiva é uma das sete integrantes da atual Comissão de Mortos e Desaparecidos. Ela falou sobre o processo de filmagem do longa metragem e sobre os impactos que a repercussão do filme teve para a família.
“É um trabalho super delicado. Não pensem que é fácil, porque a gente está muito exposto, está o tempo inteiro vivendo coisas entre nós, lembrando de coisas. Éramos de idades diferentes, vivemos coisas diferentes. Não é muito fácil, mas que seja em benefício de que não se esqueça de que resta a verdade. Que a gente contribua não só no Brasil, para que se faça claro neste mundo de Trump e outros fascistas em ascensão; se volte ao tema de que a democracia se constrói todo dia. Depende de cada um de nós”, falou Vera Paiva.
Por que iniciar o trabalho no Recife
Segundo a presidente da comissão, Eugênia Augusta Gonzaga, o Recife foi a cidade escolhida para a retomada das diligências por conta do alto número de desaparecidos relacionados a Pernambuco e ao rico acervo de material histórico presente no estado.
“O número de desaparecidos e mortos, proporcionalmente ao tamanho do estado, é o maior do país. Nós temos documentado 51 pessoas de algum modo relacionadas a Pernambuco. Ou que nasceram aqui, desapareceram e morreram em outro estado, ou que nasceram em outro estado e vieram a morrer ou desaparecer aqui”, falou Eugênia Gonzaga.
De acordo com Samuel Ferreira, coordenador científico da comissão especial, foram mapeados 18 desaparecidos políticos que podem estar sepultados nos dois cemitérios recifenses.
“Havia nove pessoas relacionadas a possíveis sepultamentos no Cemitério de Santo Amaro e nove mortos e desaparecimentos políticos no Cemitério da Várzea. Nosso trabalho se baseou em uma pesquisa nesses cemitérios e também em entrevistas com os funcionários e servidores e em pesquisa nos livros de registro de óbito”, explicou Samuel Ferreira.
Os desaparecidos relacionados foram:
Cemitério de Santo Amaro
Amaro Luiz de Carvalho
Anália de Souza Melos Alves
Evaldo Luiz Ferreira de Souza
Ivan Rocha Aguiar
João Mendes Araújo
Jonas José de Albuquerque Barros
Luiz Gonzaga dos Santos
Odijas Carvalho de Souza
Raimundo Gonçalves de Figueiredo
Cemitério da Várzea
Antônio Henrique Pereira Neto
Eudaldo Gomes da Silva
Evaldo Luiz Ferreira de Souza
Gildo Macedo Lacerda
Jarbas Pereira Marques
José Carlos Novaes da Mata Machado
José Manoel da Silva
Pauline Philipe Reichstul
Paulo Stuart Wright
Soledad Barrett Viedma
Além da audiência pública na sede da Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco (OAB-PE), o grupo também realizou um ato junto ao Monumento Tortura Nunca Mais, na Rua da Aurora, para inaugurar escultura em homenagem à militante Soldedad Barret Viedma, uma das desaparecidas políticas, morta pela ditadura no Recife em 1973.
Soledad estava grávida de quatro meses quando foi traída por seu companheiro, o agente duplo José Anselmo dos Santos, conhecido como Cabo Anselmo.
Comissão de Mortos e Desaparecidos pode reanalisar caso da morte de Juscelino Kubitscheck
Investigação sobre a morte de JK
Após o encontro, a presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, Eugênia Gonzaga, falou sobre a possibilidade de o grupo reabrir as investigações sobre a morte do ex-presidente Juscelino Kubitscheck.
Ela explicou que o caso está sendo analisado por uma relatora, a historiadora Cecília Dão, que vai estudar documentos relacionados à morte de JK e verificar se existem fatos novos depois das conclusões da Comissão Nacional da Verdade.
“Houve um pedido de reabertura e, obviamente, como nós acatamos a todos os pedidos de reabertura, ele será analisado. Não significa que já foi acatado. (…) Não há prazo fixo, mas normalmente é de uma reunião pra outra. Mas isso depende da complexidade do caso. A reunião já está agendada para maio, em Porto Alegre”, explicou.
Ainda segundo Eugênia Gonzaga, atualmente existe uma lista com 434 nomes de desaparecidos e alguns pedidos de reabertura de investigação. O assunto vai ser debatido durante reunião na sexta-feira (14), também no Recife.
“Existe uma posição inicial de que não se pode abrir novos casos. Vamos discutir sobre a reabertura e fazer a proposta: uma divisão dos reconhecimentos para fins exclusivamente históricos e reconhecimentos que pretendam indenizações, que são mais complexos. Se vamos cindir [dividir] esse tipo de pedido para a Comissão, ou se a gente vai analisar em conjunto”, falou Gonzaga.
Eugênia explicou que quando a comissão foi criada, em 1995, houve uma negociação com os militares. “Tanto é que, por exemplo, nos outros países, são vítimas as pessoas atingidas pelos atos de exceção; fossem ou não militantes contra aquele governo. No Brasil, criou-se esse critério de ter que ser militante contra o governo para poder ser reconhecido como vítima da ditadura e se estipulou prazo para as famílias requererem esse reconhecimento”, explicou.
O prazo para reconhecimento, segundo Eugênia Gonzaga, foi reaberto diversas vezes, mas a última oportunidade foi encerrada em 2002.
“Ao nosso ver, e aí eu falo por mim como jurista, é inconstitucional esse tipo de limitação, porque o Supremo Tribunal Federal entende que é imprescritível o direito à busca da verdade histórica, o direito de indenização por graves lesões a direitos humanos. Então, esse é um tipo de prazo que hoje não deveria estar sendo considerado em vigor, mas é uma discussão jurídica bastante difícil. Urgente para ser revista, com certeza”, pontuou.
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