
“Tudo o que a gente imaginou se revelou muito pior”, afirma a promotora de justiça Elaine Rita Auerbach sobre os desdobramentos da Operação Venefica, desencadeada pelo MPSC (Ministério Público de Santa Catarina). As investigações iniciaram em 2017 quando dois pacientes que passaram pela F. Coaching, clínica de emagrecimento do mentor Felipe Francisco em Joinville, foram até a polícia para denunciar um possível esquema criminoso. Por meio da ação, diversos estabelecimentos foram fechados e profissionais da saúde foram responsabilizados por receitar e vender, sem respaldo técnico, medicamentos manipulados que podem gerar riscos à saúde.

Operação Venefica desmantelou esquema criminoso em clínicas de emagrecimento de SC – Foto: Reprodução/ND
Fiscalizações mais rigorosas após esquema revelado pelo MPSC
A partir da operação, os Conselhos Regionais de Medicina e Farmácia modificaram as fiscalizações realizadas em clínicas e farmácias no estado. Em agosto de 2024, o CRM-SC (Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina) criou a Comissão de Combate ao Exercício Ilegal da Medicina. A iniciativa conta com a parceria da Polícia Civil, do Ministério Público, do Procon e da Vigilância Sanitária, e tem como objetivo centralizar denúncias, coordenar ações de fiscalização, promover medidas judiciais e fornecer material técnico para apoiar investigações.
“A colaboração com outros órgãos é essencial para garantir investigações mais eficazes diante do aumento das denúncias”, afirmou o CRM-SC.
O CRF-SC (Conselho Regional de Farmácia de Santa Catarina), por sua vez, reforçou que, independentemente de casos específicos, a fiscalização segue ativa em todo o estado para assegurar a proteção da saúde da população.
Operação tirou “amarras” dos pacientes
As investigações do MPSC também tiveram impacto direto sobre vítimas de práticas irregulares. João*, um dos primeiros pacientes afetados, relata que conseguiu minimizar os efeitos dos medicamentos que utilizava graças à atuação dos órgãos de fiscalização.
“Se não fosse as investigações e as denúncias, lá em 2017, eu teria continuado o protocolo deles, provavelmente teria se agravado [o problema]. Graças a Deus foi interrompido no início já”, relata.
Como iniciou a Operação Venefica
Quando a promotora Elaine Rita Auerbach assumiu a 13ª Promotoria da Comarca de Joinville, um inquérito já estava instaurado com o depoimento de dois pacientes que passaram por processos de emagrecimento na F. Coaching. Ao ter acesso ao inquérito, em 2021, a promotora prontamente foi em busca de informações complementares sobre a denúncia.
De acordo com Elaine, um dos pontos que mais chamou a atenção da investigação foi as redes sociais da F. Coaching e, mais adiante, as de outras clínicas de emagrecimento envolvidas no esquema. “As redes sociais estavam cheias de postagens para atingir os consumidores, os pacientes, prometendo coisas inalcançáveis com enzimas, ou só com uma dieta”, afirma.
O que dizem os primeiros denunciantes
“Insônia e perda de apetite”, é assim que João resume o impacto do seu tratamento de emagrecimento na clínica de Felipe Francisco, que à época ainda era chamada de Impacto Nutrição.
Ele escolheu o local aleatoriamente, buscando entre uma lista de clínicas que atendiam seu plano de saúde. Em sua primeira consulta, foi atendido por uma nutricionista, realizou um exame de bioimpedância – método que avalia a composição corporal – e já saiu de lá com a indicação de um composto fitoterápico, que fazia parte do seu novo “protocolo”, como eram chamados os tratamentos da clínica.
O que João ainda não sabia, era que esse protocolo envolvia compostos medicamentosos voltados para o emagrecimento, ganho de massa magra, aumento de músculos, performance física, entre outros, com substâncias de venda proibida sem receita. “Você não tem essa consciência ou preocupação de que aquilo ali vai te fazer mal”, diz em entrevista exclusiva ao portal ND Mais.
Já nos primeiros dias do protocolo, ele parou de sentir fome e perdia o sono facilmente durante as noites. Com isso, apareceu outro sintoma: a irritabilidade. O combo, porém, não alarmou João, que conseguiu perder cerca de seis quilos nas primeiras três semanas de tratamento. “Confiei a minha alimentação e a minha saúde para a clínica e não tinha o porquê de não seguir as orientações deles”, diz.
A poucos dias de completar um mês seguindo o protocolo à risca, João leu as notícias sobre a prisão de Felipe Francisco, ocorrida após investigação de crimes semelhantes cometidos no Paraná.
“Antes mesmo de ter um retorno na clínica eu decidi suspender o uso do manipulado e não voltei mais na clínica do Felipe. Depois das primeiras notícias, até me procuraram para trocar o medicamento, mas já não tive mais confiança em continuar o acompanhamento”, relata a vítima.
João ainda foi informado, por meio de reportagens à época, de que a polícia procurava pacientes da clínica para coletar informações e dar andamento ao processo. Prontamente, ele se dispôs a ir até uma delegacia e entregou parte dos compostos medicamentosos que ainda possuía.
Após uma perícia detalhada, a investigação constatou que a fórmula continha sibutramina, um remédio controlado utilizado para tratar a obesidade, que atua no sistema nervoso central para causar um efeito de saciedade.
Essa é apenas uma das substâncias identificadas em diversos rótulos de medicamentos encontrados nas clínicas investigadas. Análises periciais também detectaram a presença de dimesilato de lisdexanfetamina, conhecido comercialmente como Venvanse, em algumas fórmulas.

Grande parte das substâncias encontradas em fórmulas nas clínicas era de uso restrito – Foto: Reprodução/ND
No entanto, segundo denúncia do MPSC, Felipe e seus aliados prescreviam o princípio ativo sem consultas com médicos especialistas e, muitas vezes, sem informar ao paciente que a substância seria incluída em seu “protocolo fitoterápico”.

Pedidos de receitas e medicamentos controlados eram combinados por conversas em aplicativo de mensagem – Foto: Reprodução/ND
Outros relatos preocupantes
A promotora de Justiça ainda teve acesso a outro depoimento grave na época dos fatos. De acordo com Elaine, uma mulher foi a primeira a denunciar que havia algo errado na clínica. “Teve efeitos colaterais muito grandes. Ela relatava que não tinha forças, que quase desmaiava na academia e não entendia [o porquê]. Ela estava tomando um produto que, em tese, era fitoterápico, natural”, conta.
Outra paciente, em mensagem a Felipe Francisco, relatou que sentia calor, dor de barriga e calafrios dois dias após iniciar o protocolo. O “falso doutor” recomendou que a mulher suspendesse o uso da fórmula por alguns dias até se recuperar totalmente. Assim, poderia retomar gradativamente o tratamento.

Paciente foi uma das que relatou reações adversas após iniciar protocolo – Foto: Reprodução/ND
“Era grave a situação e poderia só ter acabado ali, no sentido de que poderia só ter feito uma denúncia, ou hoje em dia caberia um acordo mesmo, para que aquele processo, mesmo sendo criminal, se encerrasse. Mas foi feita uma busca maior para verificar se isso continuava acontecendo”, relembra a promotora.
Como o MPSC desmantelou um império de clínicas de emagrecimento
Segundo Elaine, a investigação inicial da Operação Venefica demorou cerca de um ano. Nesse período, foram levantados nomes de profissionais e clínicas que trabalhavam em esquema similar ao de Felipe Francisco – que nas redes sociais se apresentava como “doutor”, mas não tinha nenhuma formação na área da saúde até o ano de 2021, quando concluiu o curso de Nutrição.
“Se prendêssemos só uma pessoa que comandava [o esquema], os outros poderiam continuar. E foi o que aconteceu na prisão anterior [de Felipe, com relação aos crimes no Paraná]. Ali mesmo a gente verificou que algumas pessoas já tinham saído da F. Coaching e tinham aberto suas próprias clínicas. Elas agiam da mesma forma, pegando o que elas aprenderam lá”, explica a promotora.
Investigação revelou o lado obscuro das clínicas de emagrecimento
No início da operação, a promotora responsável por liderar as investigações do MPSC conseguiu liberação judicial para ter acesso a um software usado para registro de consultas, protocolos prescritos e injetáveis feitos na clínica do coach.
Junto com a apreensão de mais de 150 aparelhos eletrônicos, os dados coletados serviram de base para confirmar todas as suspeitas. “Conseguimos fazer toda aquela cadeia que antes disso tivemos que construir, que a gente imaginava como ocorria. E a partir do momento que a gente obteve essas provas, não tinha dúvida de que tudo que a gente imaginou se revelou muito pior”, afirma a promotora.
Felipe Francisco, apontado como o mentor do esquema – que iniciou no Paraná e teve ramificações em Joinville e Balneário Camboriú -, coordenava uma equipe com diversos profissionais da saúde para formular protocolos medicamentosos, como médicos, biomédicos, nutricionistas e farmacêuticos.
Dono da F. Coaching, a maior clínica investigada por fazer parte do esquema, o mentor era conhecido no meio pela alcunha “Felipe Bomba”. Alguns pacientes ouvidos durante as investigações afirmaram que o procuravam justamente porque sabiam como ele trabalhava e o acesso que tinha a fórmulas proibidas, que misturavam desde anabolizantes a psicotrópicos.
“Até aquele paciente que ia lá querendo mesmo aquele crescimento, a hipertrofia, o emagrecimento ‘a qualquer custo’, que sabia o que ia tomar ou ingerir, ele sempre foi enganado porque era feita uma venda casada, eram superfaturados os produtos. E mesmo que ele achasse que estava ingerindo um produto regular, existiam muitas irregularidades”, reitera a promotora.
Esquema criminal mascarado
A investigação constatou que a organização criminosa se aperfeiçoou ao longo dos anos, de modo que a prática fosse mais complexa e difícil de ser descoberta. Na F. Coaching, por exemplo, os nutricionistas eram o “carro-chefe” de todo o esquema criminoso.
Os profissionais eram os responsáveis pelo atendimento aos pacientes e, logo no primeiro encontro, deveriam vender diversos protocolos. Substâncias, medicamentos e produtos clandestinos eram comprados de farmácias da região e, algumas vezes, eram até importados de países como o Paraguai.
“A maior parte das vendas era na primeira consulta sem qualquer exame médico. Entregava-se guia para exame, mas não interessava se você tinha algum problema ou não, ou se a sua testosterona estava baixa, vitamina…”, relata a promotora.
Conforme Elaine, para um profissional atuar na F. Coaching ele precisava comprometer-se a vender uma quantidade de comprimidos, cápsulas, injetáveis e tratamentos por vias aéreas mensalmente. Muitos desses procedimento, entretanto, não possuíam comprovação científica para emagrecimento ou ganho de massa muscular.
“Então, se chegava no final do mês e eu, como nutricionista, não tinha vendido, aquele final do mês eu ia forçar vender mesmo que não precisasse. Faltava um tanto de vias aéreas? Eu ia forçar vender para garantir a minha comissão”, explica a promotora de Justiça.
Tratamentos sem comprovação e medicamentos proibidos
Por meio das informações coletadas, o MPSC também esclareceu como funcionava as indicações de protocolos. Substâncias e fórmulas eram adquiridas em grandes quantidades e, se necessário, fracionadas para atender a mais de um cliente. Produtos como anabolizantes e testosteronas, por exemplo, não poderiam ser comercializados dessa forma.
Para lucrar ainda mais, os profissionais aconselhavam os pacientes a realizaram os tratamentos na própria clínica ou a comprar de farmácias parceiras que compartilhavam os lucros.
“Ali eram aplicados produtos clandestinos, anabolizantes clandestinos, porque eles têm um frasco maior, então você consegue aplicar em mais pessoas. Você vai distribuindo e ganha mais lucro com isso. E também buscou-se com essas parcerias com as farmácias fazer com que, efetivamente, em muitas situações, o que estava no rótulo não era o que estava lá dentro”, expõe a promotora.
O novo esquema conseguiu mascarar parte das ações ilegais das clínicas de emagrecimento, já que a partir dessas parcerias as embalagens passaram a conter nomes de médicos e farmácias reais.
Ramificações do império de medicamentos clandestinos
Durante a investigação, o MPSC ainda apurou que outros profissionais atuavam em conjunto para formular protocolos medicamentosos em estratégia similar à do coach Felipe Francisco.
O médico Julian Rodrigues Martins e a farmacêutica Marjorie Basilio, por exemplo, apesar de atuarem em cidades diferentes, trabalhavam em conjunto para superfaturar na venda de medicamentos.
O Dr. Julian, como se apresentava na internet, atendia em um ambiente de trabalho colaborativo na rua Dona Francisca, em Joinville. De lá, ele mantinha seus pacientes em contato com a farmacêutica de Itapema, no Litoral Norte de Santa Catarina.
Os dois combinavam, principalmente por mensagens, quais compostos utilizar nos protocolos recomendados aos pacientes. Caso alguém solicitasse um receituário para encomendar um medicamento fora da farmácia de Marjorie eram inclusos ingredientes para aumentar o valor final da fórmula.
Dessa forma, a farmácia de Marjorie passava uma falsa ilusão de que o preço dos produtos estaria muito abaixo do valor de mercado, o que compensaria solicitar os medicamentos de outra cidade. Segundo a promotora, as clínicas envolvidas no esquema, como a de Julian, conseguiam superfaturar até 300% em cima dos “protocolos” comercializados.

Julian e Marjorie foram os primeiros profissionais condenados no âmbito da Operação Venefica – Foto: Internet/Reprodução/ND
A investigação ainda apontou que a prescrição de protocolos se tornou um grande círculo vicioso do esquema. Se uma substância causasse uma reação adversa, por exemplo, os profissionais indicavam outro medicamento ou fórmula para amenizar o sintoma.
“Se vendia um medicamento para a pessoa ficar disposta, só que ela ia ter uma disposição absurda, muita agitação, então era preciso prescrever um medicamento para dormir. Então, ela ia dormir muito e era preciso colocar um medicamento para acordar para conseguir treinar. E, se ela treinasse demais, tivesse muita força e muito apetite, ela precisava de um medicamento para controlar o apetite”, relata a promotora.
Ainda segundo a denúncia, as clínicas vendiam o sonho da vida perfeita. “Chegou uma etapa em que não se vivia mais sem prescrever aos pacientes medicamentos para que eles ficassem ligados e focados no trabalho, como Venvanse, psicotrópicos. Buscava-se, de alguma forma, fazer com que a pessoa se sentisse completa, quando, na verdade, ela estava dependendo exclusivamente de medicamentos para viver e buscar esse resultado”, afirma.
A promotora afirma que, ao analisar todas as conversas obtidas por meio da autorização judicial, constatou-se que os profissionais investigados não demonstravam preocupação com os pacientes. “[Pode-se perceber] o desprezo pela saúde da população, no sentido de que se buscava vender o maior número de medicamentos mesmo que a pessoa ficasse dependente”, relata.
MPSC busca responsabilizar acusados na Justiça
De acordo com a promotora, o MPSC já possui material suficiente para prosseguir com os processos já instaurados, assim como iniciar novas fases da Operação Venefica.
“Mas há necessidade também de acompanhar primeiro esses processos que estão tramitando. Porque não adianta nada a gente fazer uma operação dessa envergadura para depois falar: ‘ah, por falta de prova, ou que não demos conta de acompanhar, eles serão absolvidos’. Então, precisamos garantir que a qualidade do trabalho da investigação seja ainda maior durante o processo, para que realmente eles sejam punidos na forma da lei”, declara.

Operação deverá ter novos desdobramentos ainda em 2025 – Foto: Reprodução/ND
Até o momento, o médico Julian Rodrigues Martins e a farmacêutica Marjorie Basilio foram os únicos condenados pela Justiça no âmbito da Operação Venefica. No entanto, os dois conseguiram habeas corpus pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça) e recorrem em liberdade.
A pena do médico chega a 38 anos, um mês e 15 dias de reclusão, em regime fechado, além de mais seis anos em regime semiaberto por burla ao consumidor. Já a pena da farmacêutica chega a 15 anos, seis meses e 20 dias. Além de seis anos, sete meses e 10 dias de detenção em regime semiaberto também por burla ao paciente.
Procuradas pela reportagem do portal ND Mais, as defesas de Julian e Marjorie garantem que seus clientes são inocentes e que recorrerão das decisões. Os conselhos ainda esclareceram que investigações internas para apurar as condutas dos profissionais seguem tramitando sob sigilo.
O médico já sofreu uma penalidade e teve seu CRM bloqueado por seis meses – e prorrogado em dezembro e 2024 – e segue proibido de exercer a profissão em clínicas privadas.
Já a defesa de Felipe Francisco, acusado de 260 crimes por comandar o esquema, também foi procurada, mas não retornou até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto.

Números obtidos pela investigação do MPSC – Foto: Reprodução/ND
“O trabalho não acaba aqui, porque vimos que é uma prática generalizada. Não só com pessoas sem qualificação, mas até pessoas com qualificação que buscam esse caminho mais fácil”, garante a promotora de Justiça.
*João é um nome escolhido pela equipe de reportagem do portal ND Mais para preservar a identidade e integridade da vítima.