
Frutos são alguns dos que evoluíram para serem consumidos por grandes animais que viveram no período Pleistoceno. Preguiça-gigante fez parte da megafauna que existiu no Período Pleistoceno
Min Zhou/ilustração
No Período Pleistoceno, que se estendeu de aproximadamente 2,5 milhões de anos atrás até cerca de 11,7 mil anos, a América do Sul era o verdadeiro continente dos grandes mamíferos. Preguiças-gigantes, tatus, mastodontes, toxodontes e tigres-dentes-de-sabre percorriam paisagens que, hoje, pouco lembram aquele ecossistema pulsante.
Enquanto a África é hoje conhecida por sua fauna icônica, com leões, elefantes e girafas, no passado era o solo sul-americano que abrigava a maior diversidade e densidade de gigantes.
No Período Pleistoceno, a América do Sul era o verdadeiro continente dos grandes mamíferos
Getty
Esses animais tinham um papel essencial na manutenção da vegetação, sendo os principais dispersores de sementes de muitas plantas que ainda existem nos biomas brasileiros.
O desaparecimento dessas criaturas, provocado pela mudança climática e pela chegada dos primeiros seres humanos ao continente, alterou radicalmente os processos ecológicos e a distribuição das plantas que dependiam desses animais
O Cerrado, que no passado abrigava uma das faunas mais espetaculares do planeta, hoje é um bioma ameaçado pelo desmatamento e pela expansão agropecuária. A falta de grandes herbívoros impacta diretamente a composição vegetal, aumentando a biomassa de plantas e tornando o bioma mais vulnerável a incêndios.
“A relação entre mamíferos e fogo é bem conhecida na África, mas no Brasil ainda estamos começando a entender esses impactos”, explica o professor Mauro Galetti, pesquisador da Universidade Estadual Paulista (UNESP) e do Centro de Pesquisa em Biodiversidade e Mudanças no Clima (CBioClima) em Rio Claro.
Estudos recentes mostram que a ausência de grandes herbívoros pode estar tornando o Cerrado mais inflamável, já que sem os grandes dispersores, muitas árvores ficam sem regeneração adequada.
Pequi: o Big Mac da preguiça-gigante
O pequi (Caryocar brasiliense) é um dos frutos mais emblemáticos do Cerrado, sendo amplamente utilizado na culinária regional. Sua polpa amarela e macia é altamente calórica e rica em óleos, tornando-se uma fonte de energia essencial tanto para animais quanto para humanos. Seu aroma marcante e sabor característico fazem dele um ingrediente apreciado em diversos pratos típicos.
“Um único fruto de pequi tem cerca de 550 quilocalorias, o equivalente a um Big Mac”, diz Galetti. Ele explica que uma preguiça-gigante, pesando cerca de cinco toneladas, para suprir sua demanda energética diária de aproximadamente 34 mil calorias, precisaria consumir cerca de 280 frutos de pequi todos os dias.
Um único fruto de pequi tem cerca de 550 quilocalorias, o equivalente a um Big Mac
Nina Wenóli/Arte TG
O pequizeiro é uma árvore de copa frondosa que pode atingir até 12 metros de altura. Suas folhas são grandes e compostas por três folíolos cobertos por uma leve penugem, com as pontas entrecortadas.
O fruto tem aproximadamente o tamanho de uma maçã, com casca verde e um caroço interno revestido por uma polpa nutritiva. Em anos de boa produtividade, o pequizeiro pode chegar a gerar até dois mil frutos por árvores.
O pequizeiro é uma árvore de copa frondosa que pode atingir até 12 metros de altura
Francisco V. Bezerra Neto/iNaturalist
No entanto, abaixo dessa camada comestível, há minúsculos espinhos, exigindo cuidado ao consumir o pequi cozido.
Enquanto os humanos precisam se atentar a esses espinhos, para os gigantes do passado, como as preguiças-gigantes, isso não era um problema. Esses animais desempenhavam um papel crucial na dispersão das sementes do pequi.
“Se pensarmos que essas preguiças percorriam grandes áreas do Cerrado, elas espalhavam milhares de sementes ao longo da vida, garantindo a regeneração dessas árvores”, afirma Galetti.
O pequi tem aproximadamente o tamanho de uma maçã, com casca verde e um caroço interno revestido por uma polpa nutritiva
Leandro Moura MTur/Wikimedia Commons
Mesmo após a extinção da megafauna, o pequi resistiu no Cerrado, graças a novos dispersores e à relação com os povos indígenas, que há séculos utilizam o fruto para alimentação e medicina.
“Se o pequi sobreviveu até hoje, em parte é porque os humanos passaram a cultivá-lo e a dispersar suas sementes, desde os paleo-indígenas até hoje”, explica o pesquisador.
Outros frutos anacrônicos
Além do pequi, outros frutos como cacau, caju, buriti, babaçu, bacuri e jatobá, fazem parte de um grupo curioso de plantas cujas sementes parecem ter sido projetadas para um mundo que já não existe.
Esses frutos, chamados de anacrônicos, evoluíram para serem dispersos por animais gigantes da megafauna extinta e que hoje são órfãos dos brutamontes.
Além do pequi, frutos como cacau, caju, buriti, babaçu, bacuri e jatobá, fazem parte de um grupo de frutos chamados anacrônicos, que significa que evoluíram para serem dispersos por animais gigantes da megafauna extinta
Reprodução/Globo Repórter
O conceito de frutos anacrônicos foi descrito na década de 1970 pelo ecólogo Daniel Janzen, que observou que algumas árvores produziam frutos grandes, pesados e resistentes, mas poucas espécies animais os consumiam e espalhavam suas sementes.
No Brasil, o pesquisador Mauro Galetti aprofundou esses estudos e mostrou como diversas plantas ainda carregam marcas dessa relação perdida.
“O pequi, o jatobá e o cacau são alguns exemplos de frutos que evoluíram para serem consumidos por animais gigantes, mas que hoje não têm dispersores naturais equivalentes”, explica.
Abertura do pequi para extração da amêndoa (chamada também de castanha), de modo a exibir a camada com espinho, razão pela qual nunca se pode morder o fruto
André Koehne/Wikimedia Commons
Quem herdou o trabalho dos gigantes?
Com o desaparecimento da megafauna, novos protagonistas emergiram para preencher a lacuna ecológica. Hoje, a anta – o maior mamífero terrestre brasileiro, pesando cerca de 300 kg – é o principal dispersor de sementes de grande porte.
“A anta é a última gigante da América do Sul. Sem ela, muitas espécies de árvores perderiam sua capacidade de se espalhar”, destaca Galetti.
Com o desaparecimento da megafauna, novos protagonistas emergiram para preencher a lacuna ecológica de dispersão de sementes, como a anta, o maior mamífero terrestre brasileiro
Aguinaldo Matos
Além da anta, roedores como as cutias, que antes faziam apenas a dispersão secundária, desempenham um papel essencial ao enterrar sementes para consumo futuro, contribuindo involuntariamente para a germinação de novas plantas.
A interferência humana também teve um papel crucial na preservação dessas espécies vegetais.
Do Pleistoceno ao presente
A história da megafauna brasileira não é apenas uma relíquia do passado, mas um capítulo fundamental para entendermos os desafios ecológicos do presente.
Estudar o impacto dos dispersores desaparecidos nos ajuda a projetar estratégias para conservar a biodiversidade e restaurar funções ecológicas que foram interrompidas há milênios.
O Chibano é uma das quatro idades do Pleistoceno, uma época de muitas glaciações
Istock via BBC
Para quem deseja se aprofundar nesse tema, o livro “Um Naturalista no Antropoceno: um biólogo em busca do selvagem”, do professor Mauro Galetti, publicado pela Editora UNESP, oferece uma abordagem detalhada sobre as implicações das transformações causadas pelos humanos no planeta.
A obra recebeu o Prêmio Jabuti Acadêmico e o Prêmio ABEU 2024, reconhecendo sua relevância para a compreensão das dinâmicas ambientais.
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